A dupla civilização do Direito do Trabalho
O historiador Eric Hobsbaum popularizou no Ocidente uma antiga imprecação chinesa, que é extremamente interessante pelo seu aspecto aparentemente contraditório:
“Que você viva em tempos interessantes”.
É contraintuitiva a acepção de que tempos intranquilos seriam algo indesejado, já que, atualmente, todos buscam significado e relevância para suas vidas na tensão e no conflito. As páginas da História dos tempos de paz e tranquilidade são curtas. Já aquelas que se dedicam a contar a história de tempos intranquilos, e repletos de eventos são longas e detalhadas.
Não nos parece exagerado dizer que nós que atuamos perante a Justiça do Trabalho temos vivido tempos interessantes, como talvez não se viva em outra geração. Decisões recentes do Supremo Tribunal têm alterado paradigmas até então inquestionáveis nas relações de trabalho e apresentado desafios de ordem principiológica.
Com efeitos, as decisões proferidas nos ADC 48, na ADPF 324, no RE 958.252 (Tema 725-RG), na ADI 5835 MC, no RE 688.223 (Tema 590-RG), na ADPF 324, na ADI 5.835 e nos Recursos Extraordinários 958252 e 688223 apresentam uma visão evolucionária da temática laboral, e da organização do aparelho estatal frente a esse fenômeno.
Como exemplo dessa dinâmica, destacamos as seguintes expressões dos acórdãos mencionados supra: Como já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, a Constituição não impõe uma única forma de estruturar a produção. Ao contrário, o princípio constitucional da livre iniciativa garante aos agentes econômicos liberdade para eleger suas estratégias empresariais dentro do marco vigente (CF/1988, art. 170). A proteção constitucional ao trabalho não impõe que toda e qualquer prestação remunerada de serviços configure relação de emprego (CF/1988, art. 7º). ADC nº 48, Rel. Min. Roberto Barroso, Plenário, DJe de 19/5/2020
3. O contrato de emprego não é a única forma de se estabelecerem relações de trabalho, pois um mesmo mercado pode comportar alguns profissionais que sejam contratados pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho e outros profissionais cuja atuação tenha um caráter de eventualidade ou maior autonomia. (…) Caso em que o reclamante não se trata de trabalhador hipossuficiente, sendo capaz, portanto, de fazer uma escolha esclarecida sobre sua contratação. Inexistente, na decisão reclamada, qualquer elemento concreto de que tenha havido coação na contratação celebrada. (Rcl 56.285 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe de 30/3/23
Durante sua evolução histórica, o Direito do Trabalho se desenvolveu como ciência apartada do Direito Civil pela existência do elemento da subordinação entre trabalhador e empregador, que tornaria, por definição, o primeiro hipossuficiente e merecedor de proteção estatal máxima face ao empregador.
Sem entrar no mérito da propalada dinâmica capital-trabalho, e de sua insuficiência para explicar os novos modos de produção no presente século, nos parece claro que, de agora em diante, o enfoque da análise da existência ou não de relação trabalhista passa a levar em consideração de forma preponderante a manifestação de vontade das partes no momento da contratação.
Essa expressão, consolidada através de um contrato, passa a ser efetivamente a lei entre as partes, delineando os rumos da relação do início ao fim.
Nesse sentido, a força atrativa do Art. 9º[1] da CLT perde muito de seu poder, sendo suplantada pela vontade das partes no momento do início da relação. Não poderá a manifestação de vontade da modalidade de contrato no momento da contratação ser suplantada pelas posturas e atitudes das partes na constância do contrato.
É clara a intenção do Pretório Excelso, quando afirma que, em não se tratando de pessoa hipossuficiente, sua vontade manifesta em contrato deve ser considerada como plenamente válida. E mais: Entendemos que a condição de trabalhador não poderá ser alegada como único substrato para se compreender por sua hipossuficiência.
Apenas uma discussão sobre vícios na vontade poderia levar à conclusão de que a vontade da pessoa física contratante não seria válida e eficaz para regular sua relação de trabalho.
Eis aí, demonstrada, a primeira civilização. O Direito do Trabalho, nesta acepção, se reaproxima do Direito Civil. Esta nos parece a mais evidente de todas.
Agora, passemos à segunda civilização.
Entendemos que a característica central de qualquer relação humana deverá ser sempre a manifestação de vontade livre. E o contrato de trabalho não está apartado do mundo, nesta acepção.
O novo Direito do Trabalho, iniciado a partir da interpretação do texto constitucional realizada por seu tradutor por excelência, compreende o trabalhador como um cidadão em sua plenitude, totalmente civilizado, capaz de tomar decisões com sua própria vida, e não como um ser de segundo classe.
Nesse sentido, devem ser superadas as expressões que emprestam ao trabalho o enobrecedor da condição humana. Não é o trabalho que dignifica o homem, mas é sua própria condição humana que lhe dá dignidade. E essa condição humana plena e digna é fundamento de nossa República, como trazido pela Constituição em seu primeiro Artigo.
Portanto, ainda que seja necessária uma releitura verticalizada do Direito do Trabalho, de modo a adequar as normas infraconstitucionais a esses novos paradigmas, cremos que se caminhará rumo a uma evolução necessária e conforme à moderna leitura do texto constitucional.
Se não há impedimentos constitucionais às formas de organização de trabalho remunerado que não o derivado do contrato de trabalho, não há qualquer prejuízo aos direitos sociais erigidos nos Art. 7º e 8º da CF, que terão sua viabilidade intocada, e sua aplicabilidade vinculada à vontade das partes em estabelecer vínculos mediante relação subordinada.
Assim, a partir dessa dupla civilização, caminha-se para um cenário de maior transparência e eficiência nas relações de trabalho. A relação de trabalho deixa de ser um eterno jogo de suspeitas desde a contratação até a rescisão. Acaba a desconfiança de que cada parte estaria ‘criando provas’ para buscar provar que a relação havida entre as partes não é aquela que foi acordada contratualmente.
Qualquer evolução de compreensão que traga maior liberdade e gere maior confiança entre as partes, considerando cidadãos como dignos de honra e respeito deve ser valorada assertivamente, e vista de forma positiva por todos os atores das relações laborais.
[1] Art. 9º – Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.
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