Douglas Felix Fragoso
Fernanda Beatriz Paulino da Silva Cavalcanti
Em recente decisão amplamente divulgada pela mídia especializada, o Supremo Tribunal Federal, através de seu Ministro Alexandre de Morais, acolheu Reclamação Constitucional proposta por empresa de transporte por aplicativo para cassar decisão que concedeu vínculo de emprego a motorista vinculado à sua plataforma.
A decisão prolatada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG) concedia o vínculo de emprego a motorista inscrito na plataforma, ao compreender pela existência dos elementos do vínculo de emprego na relação entre motorista e aplicativo. O entendimento foi delineado principalmente pela presença da subordinação, expressa através do exercício de poder disciplinar e controle da atividade através de algoritmos em aplicativo próprio, afirmando ainda que, em casos em que a relação se posiciona em uma ‘zona cinzenta’, a ordem jurídica trabalhista atrai a relação, como sendo aquela que melhor asseguraria a dignidade do trabalho, bem como seu valor social.
Todavia, o Ministro relator compreendeu que a decisão do Regional Trabalhista se posiciona em oposição aos recentes julgamentos do STF na ADC 48, ADPF 324, RE 958.252 (Tema 725-RG), ADI 5835 MC e RE 688.223 (Tema 590-RG). Esses julgamentos têm posicionado a jurisprudência do Supremo no sentido da constitucionalidade e legalidade de modos e fórmulas alternativas de trabalho, que não apenas aquela com vínculo de emprego, determinante da incidência das normas da CLT. O posicionamento tem sido constante, seja na terceirização de mão-de-obra, seja no contrato de parceria civil entre salões de beleza e profissionais do setor, bem como contratação autônoma em transporte rodoviário de cargas.
Diante desse quadro, entendemos necessárias algumas ponderações de ordem técnica, bem como conjunturais, de modo a permitir a compreensão mais ampla do estado da matéria.
Em primeiro lugar, vemos que embora o instituto da Reclamação Constitucional seja plenamente válido e normatizado, observa-se uma expansão de suas competências, também se constatando que a Suprema Corte tem tido um olhar mais criterioso e sistêmico para sua própria jurisprudência, com o objetivo de vê-la respeitada pelos tribunais de todo o Brasil.
O tema específico sobre a natureza da relação entre motoristas e aplicativos de transporte ainda não foi apreciado pelo STF diretamente através de análise de Recurso Extraordinário. Mas houve, a nosso sentir, uma decisão consciente do Ministro Relator de assunção de competência, trazendo o Supremo para o centro de uma discussão que possui diversos agentes nos três poderes da República.
O Tribunal Superior do Trabalho, através de sua Seção de Dissídios Individuais I, está analisando dois recursos de Embargos à SDI-I (com decisões em direções opostas)[1] em que se se discute a natureza da relação entre motoristas e empresas de aplicativo. Após sustentações orais e voto que submetia a análise da controvérsia ao Tribunal Pleno, em Incidente de Recurso Repetitivo, um dos ministros componentes do órgão fracionário pediu vista, adiando a decisão sobre a matéria.[2] Este pedido de vista está pendente desde o mês de outubro de 2022.
Ao mesmo tempo, as diversas turmas do Tribunal Superior do Trabalho continuam a apreciar essa matéria, com decisões diversas e conflitantes entre si, a depender do viés da composição da turma julgadora. Há Turmas que têm se posicionado a compreender que a relação entre motoristas e trabalhadores seria de caráter subordinado, com atração das normas celetistas, e outras compreendendo se tratar de relação de natureza puramente civil, inclusive compreendendo pela incompetência absoluta da Justiça do Trabalho para julgar conflitos oriundos desta relação de trabalho, muito embora a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, tenha outorgado à Justiça do Trabalho a competência para julgar demandas que envolvam relações de trabalho em sentido amplo.
A nosso sentir, o Supremo Tribunal, ao receber a Reclamação e proceder ao seu julgamento, invade competência do Tribunal Superior do Trabalho que possui, nos termos do Art. 896, ‘c’, competência para apreciação de decisões dos Regionais Trabalhistas que violem frontalmente a Constituição Federal. Ao notarmos que a hipótese de cabimento da Reclamação é justamente a preservação da jurisprudência do Pretório Excelso em matéria constitucional[3], entendemos que melhor atenderia à necessidade de estabilização do sistema que se aguardasse a decisão da matéria pelo TST.
Também entendemos que a decisão, nos moldes como prolatada, já deixa evidente a todo o sistema de relações laborais qual o entendimento do STF sobre a matéria e que, independentemente do que será decidido pelo TST, quando a matéria chegar ao Supremo mediante Recurso Extraordinário, esse será seu posicionamento. Nesse sentido, a decisão da Reclamação esvazia de força normativa a decisão do Superior Trabalhista, influenciando a decisão a ser prolatada por ele. E mais do que isso: Quando falamos em esvaziamento de força normativa da decisão, tal não se dá apenas com relação a esse caso específico, mas, também a própria Justiça do Trabalho como um todo têm seu valor e força diminuídos, o que redunda por enfraquecer o princípio protetivo, que é a própria razão de ser da Justiça do Trabalho.
E aqui, para o que pretendemos com a presente análise, não faz qualquer diferença qual será a decisão proferida pelo TST. O princípio protetivo não será necessariamente vilipendiado caso se compreenda pela inexistência de relação de emprego entre motoristas de aplicativo e plataformas. Mas, é necessário, até mesmo para a saúde do debate da matéria, que o Tribunal com atribuição constitucional para não só discutir as ações oriundas das relações de emprego, mas também, na letra da CF, ações oriundas da relação de trabalho[4] se pronuncie, garantindo que a voz especializada seja ouvida e influencie no debate público e em potencial decisão a ser proferida no STF.
Segundamente, tem se verificado que o atual governo federal não tem conseguido promover articulação política para a elaboração de um projeto de lei que regulamentaria o trabalho através de plataformas de tecnologia que seja de consenso dentro dos representantes desta categoria. Nisso, há várias questões que podem ser abordadas.
Pela própria natureza do trabalho através de plataformas de tecnologia, não há organização sindical ou a indicação clara de lideranças que possam falar em nome da categoria, colhendo opiniões na base e as trazendo ao conhecimento e apreciação do Poder Executivo e Legislativo. O atual ocupante do Executivo, bem como seu Ministério e ocupantes dos primeiros e segundos escalões da República compreendiam e conheciam o caminho para o diálogo através de sindicatos e centrais sindicais, com lideranças claras e estrutura hierarquizada. Quando esse canal inexiste, não parece que se possa conhecer quais as intenções dos entregadores e motoristas, e o que pretendem para seu futuro e seu trabalho.
Há também uma incompreensão da própria natureza do trabalho e das novas formas de organização que transcendam aquela advinda da relação de emprego.[5] Tanto é assim que as iniciativas legislativas propostas em anos anteriores visavam equiparar o trabalho em plataformas ao trabalho celetista, com maior ou menor intervenção estatal, particularmente para obrigar as empresas a procederem ao recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas do valor recebido pelos entregadores e motoristas. [6]
Pode nos ajudar a buscar uma resposta mais adequada à celeuma aqui apresentada pesquisa promovida pelo Instituto DataFolha, em parceria com as plataformas IFood e Uber, que, ao entrevistar 1.800 motoristas e 1.000 entregadores em nos primeiros três meses de 2023, conseguiu extrair avaliações a respeito do trabalho e a visão do que desejam para sua atividade, o que lhes atraiu para esse tipo de trabalho e quais benefícios desejam. [7]
Um resumo efetivado pelo website Poder 360 nos traz o seguinte extrato de todas as informações coletadas na pesquisa:
A maioria (75%) dos trabalhadores de aplicativo disse preferir manter a autonomia em vez de ter vínculo tradicional com as normas previstas na CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). Já 14% disseram que gostariam de ter um vínculo de emprego para garantir o acesso a benefícios trabalhistas, mesmo que isso implique na perda da flexibilidade.
(…)
Ao serem questionados sobre o modelo de trabalho intermitente (modalidade de contrato de trabalho com carteira assinada e que facilita a prestação de serviços de forma não constante), 70% responderam que este não atende às suas necessidades e 14% disseram que atende.
Perguntados sobre benefícios, 89% disseram ser “preciso garantir certos direitos e benefícios aos trabalhadores de aplicativos, desde que não interfiram na flexibilidade”. Os demais (11%) falaram que “é necessário garantir todos os direitos trabalhistas aos trabalhadores de aplicativo, mesmo que isso signifique menor flexibilidade”[8]
Do que podemos colher dos dados apresentados na pesquisa, e em conjunto com tudo o que foi apresentado da conjuntura até o presente momento, podemos estabelecer o seguinte paradigma: Nos parece evidente que, ainda que se busque uma solução legislativa para a matéria dos trabalhadores por plataformas digitais, ela terá sobre si uma composição do Supremo Tribunal Federal que já afirmou o que entende que deve ser o caminho, com base em sua interpretação da norma constitucional.
Logo, uma lei que insira os trabalhadores dentro das normas da CLT encontrará resistência, não só dos próprios trabalhadores, mas também da jurisprudência do STF que, exercendo o controle de constitucionalidade, poderá que a norma se insere como ilegítima interferência nos contratos de trabalho firmados, e que a legislação restringiria meios de organização laboral na sociedade, expediente esse vedado em nossa Carta Magna.
Vale dizer, no entanto, que a necessidade da elaboração de legislação sobre o tema nos parece de tal modo urgente, que há o risco de a norma ser editada já defasada ante a dinâmica multifacetada do fenômeno do trabalho por meio de plataformas digitais, inserido em um contexto de Quarta Revolução Industrial, Indústria 4.0, Inteligência Artificial e Economia Disruptiva. Tanto é verdade que a expressão “uberização” não mais se mostra suficiente para ser aplicado de forma ampla a todas os novos formatos de prestação de serviço por meio de aplicativo.[9]
Os próximos meses trarão as respostas necessárias para que haja segurança jurídica para todos os envolvidos nessa questão.
[1] (E-RR-1000123-89.2017.5.02.0038 e E-RR-100353-02.2017.5.01.0066)
[2] https://www.tst.jus.br/-/pedido-de-vista-suspende-julgamento-de-v%C3%ADnculo-empregat%C3%ADcio-entre-motorista-e-a-uber
[3] Art. 102, I, l da Constituição Federal.
[4] Art. 114, I da Constituição Federal.
[5] Lula diz que trabalhadores de aplicativos atuam ‘quase como escravos’ e defende regulamentação. Reporter Brasil. 2023. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2023/02/lula-diz-que-trabalhadores-de-aplicativos-atuam-quase-como-escravos-e-defende-regulamentacao/. Acesso em: 25 mai. 2023.
[6] Nesse sentido, destacamos o PL 1615/2022, proposto pelo Sen. Jorge Kajuru (Podemos – GO).
[7] Pesquisa disponível em https://static.poder360.com.br/2023/05/Datafolha-ifood-uber-22-mai-2023.pdf
[8] https://www.poder360.com.br/economia/trabalhadores-de-app-preferem-autonomia-a-clt-diz-datafolha/
[9] KALIL, Renan Bernardi. A regulação do trabalho via plataformas digitais / Renan Bernardi Kalil — São Paulo : Blucher, 2020. p.75
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