Já são idos muitos anos desde que este advogado, ainda aluno do Ensino Fundamental, ouviu de uma professora a formulação das Leis de Newton, determinantes para a compreensão do comportamento dinâmico e estático dos corpos naturais. A Primeira Lei traz o seguinte axioma:
“Todo corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em uma linha reta, a menos que seja forçado a mudar aquele estado por forças imprimidas sobre ele”
Esso postulado é conhecido como Lei da Inércia. E aqui se encerra a aula de física, e passamos ao Direito.
Essa formulação da inércia, conhecida e consagrada, foi transposta para o exercício da jurisdição em estados democráticos, consagrado como princípio geral da processualística, que afirma que a jurisdição deve ser provocada pelas partes interessadas, não cabendo a Poder Judiciário a iniciativa da ação.[1] Ou seja, se não provocado, ou instado a agir, o Judiciário deve permanecer inerte.
Alargando a compreensão do princípio da Inércia do Poder Judiciário, podemos entender que é indissociável do exercício da jurisdição a necessidade de contenção e parcimônia no exercício de seu poder.
O exercício da jurisdição de modo ativo, propondo políticas públicas que modificam relações entre particulares pode distorcer o fino equilíbrio entre os poderes da República e comprometer o princípio de freios e contrapesos, indispensável para o bom funcionamento do Estado.
Nesse sentido, a atuação do Supremo Tribunal Federal tem sido criticada por todos os lados do espectro político, em razão de seu exercício de poder em esferas além daquelas normalmente exercidas pelas Cortes Constitucionais em países democráticos, e em atividades que seriam de atuação típica de outros Poderes.
Como exemplo, podemos destacar a atuação do Supremo Tribunal Federal relativa à gestão do orçamento da União, ultrapassando a competência fiscalizatória do Tribunal de Contas (órgão do Poder Legislativo), bem como do próprio Congresso Nacional, que referenda e valida o orçamento apresentado pelo Poder Executivo.
Dentro da seara do Direito do Trabalho, a última manifestação dessa postura ativa e propositiva se deu na suspensão de todas as demandas trabalhistas que versem sobre a denominada ‘pejotização’, determinada pelo Min. Gilmar Mendes. Quando falamos de pejotização, dizemos da possibilidade de formalização de contratos de prestação de serviços com empresas constituídas por pessoas físicas, em atividades que antes eram exercidas tipicamente por funcionários contratados através do regime da Consolidação das Leis do Trabalho. [2]
Essa suspensão foi efetivada tendo em vista a persistência dos tribunais trabalhistas em decidirem em desconformidade com os novos paradigmas das relações de trabalho apresentadas pelo próprio Supremo, em decisões sobre a possibilidade e legalidade de formas de contratação para além da relação regulamentada pela CLT, sem que isso constitua fraude automática à legislação laboral, ante o princípio trabalhista da primazia da realidade, codificado no Art. 9º da CLT.
A decisão de suspensão foi extremamente criticada por diversas entidades ligadas à operação do Direito do Trabalho, como associações de magistrados, procuradores ligados ao Ministério Público do Trabalho e entidades sindicais. A oposição advém do entendimento que, ao buscar trazer normas mais atualizadas com as realidades do trabalho contemporâneo, estaria o STF a revogar direitos e garantias próprias do Direito do Trabalho e suprimindo conquistas históricas.
A nosso ver, essa atuação ativa e propositiva do STF busca conferir concretude a princípios constitucionais de maneira evolucionária, quiçá revolucionária, assumindo um papel proeminente no debate público e interpretando, à luz da Carta Magna, a visão de nação pretendida pelo Constituinte.
Também nos parece que é consequência da própria natureza analítica da atual Constituição que todos e cada um dos temas afeitos à vida da sociedade acabem por demandar interpretação do texto constitucional, a fim de se saber qual o correto ditame sobre a matéria.
A Carta da República, ao atrair para si a centralidade da vida republicana, delegando pouco ao Poder Legislativo, acaba por atrair ao seu guardião por excelência um papel de destaque quase que inafastável, sem que aqui estabeleçamos juízo de valor.
Como consequência, tudo de relevante na vida da República passa pelo Supremo, o que gera não só um acúmulo infindável de processos, seja pela via do controle de constitucionalidade concentrado, seja pela via difusa, mas uma proeminência no dia a dia da sociedade não vista em outras Cortes Constitucionais.
Essa posição assumida pela atual composição do Supremo, que entende pela necessidade de intervenção mais ativa não ocorre apenas por mero exercício de força bruta, mas, a nosso sentir, também em razão da ausência de ação por parte do Congresso Nacional, que não se mostra sensível e atento às demandas da sociedade civil, perdendo a capacidade de proposição de medidas capazes de regular e solucionar os problemas que afligem a população.
Não há vácuo de poder. A retração na atuação de um dos Poderes tende a ser compensada pela expansão de outro. E entendemos que é indesejável qualquer forma de exacerbação ou diminuição das atribuições de qualquer dos Poderes da República. Há problemas derivados de uma exacerbação de poderes do Judiciário, tal e qual do Legislativo ou do Executivo.
O que se entende é que, na atual quadra, mesmo quando há atividade legislativa no sentido da modernização ou mesmo da atualização das relações trabalhistas, ocorre movimentos de resistência ferrenha através dos mesmos operadores do Direito do Trabalho que hoje se tem se posicionado em contrariedade à suspensão dos processos efetivada pelo STF.
A título de exemplo, destacamos a oposição à Reforma Trabalhista efetivada em 2017, que mesmo passados oito anos, ainda possui pontos a serem esclarecidos pelas Cortes trabalhistas, com oposição à sua aplicação, havendo inclusive intérpretes que sequer a consideram lei trabalhista. E há quem entenda que essa mesma reforma já nasceu velha, por não avançar em pontos cruciais.
Mudanças necessárias para a dinamização das relações de trabalho, que promovam geração de renda e valor não caminham no Congresso Nacional na velocidade que a sociedade necessita, isso quando caminham.
Como exemplo, constatamos a ausência de legislação específica para a regulamentação do trabalho através de plataformas de tecnologia. A problemática já está posta a muitos anos e nenhuma solução é efetivamente aprovada, revelando também a ausência de articulação do Poder Executivo.
A constatação que se faz é que, em nosso país, a Lei da Inércia está a ser invertida. Quem é provocado a agir e se deveria se mover em razão da demanda da sociedade permanece inerte, em permanente estágio de repouso.
Por outro lado, aqueles que, por definição, não podem agir ativamente para resolver demandas concretas da sociedade estão a agir abertamente, ultrapassando suas competências constitucionais.
Só há uma resposta possível a esse impasse, e que seja capaz de romper o nó górdio de competências sem desmantelar a tripartição de poderes: A assunção pelo Congresso Nacional de sua legítima e privativa competência de legislar sobre o Direito do Trabalho, como inscrito no Art. 22, I da Constituição.
Apenas no debate entre parlamentares e em diálogo com a sociedade cada um dos agentes poderá, de forma ordenada e livre, dar sua contribuição. Ao final, a dialeticidade própria do processo legislativo fará com que as respostas que a sociedade precisa emerjam, com maior possibilidade de aceitação e confiança.
É imperativo que o Poder Legislativo assuma seu papel constitucional de legítimo representante do povo, e de aglutinador das múltiplas faces das controvérsias da sociedade, e dê resposta adequada através de legislação que reflita a atualidade das discussões sobre a matéria.
Caso essa assunção de protagonismo pelo Legislativo não se concretize, há o risco real de a resposta a ser dada pelo Supremo, através de seus onze ministros não refletir a consciência e compreensão de 220 milhões de cidadãos, caindo em potencial descrédito institucional.
[1] https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/tesauro/pesquisa.asp?pesquisaLivre=IN%C3%89RCIA
[2] https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-suspende-processos-em-todo-o-pais-sobre-licitude-de-contratos-de-prestacao-de-servicos/
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