O avanço tecnológico e as novas formas de trabalho via plataformas digitais
A Quarta Revolução Industrial vai para além de sistemas e máquinas inteligentes, sua amplitude alcança áreas da computação quântica, energia renovável, nanotecnologia, inteligência artificial, aprendizagem de máquinas e tecnologia disruptiva. O que a distingue das outras revoluções é a junção dessas tecnologias e a interação entre os domínios físicos, digitais e biológicos (Schwab, 2019).
Tal avanço tecnológico é facilmente percebido nas plataformas de serviços, com a economia de compartilhamento, sob demanda. Rapidamente se popularizaram, de forma global, como um meio de prestar serviços e gerar renda, com cadastro e preenchimento de requisitos na plataforma de forma relativamente simples, com valores atrativos para os consumidores e concorrenciais com os oferecidos no mercado tradicional, além da economia de tempo e energia em procurar o prestador de serviços ideal, já que os aplicativos inteligentes analisam por meio de algoritmos, indicando ao cliente os perfis mais adequados para a demanda, levando em consideração, dentre outros, a geolocalização.
Observa-se, então, novos meios de consumir e fornecer serviços através da interação virtual. É surpreendente a velocidade que a tecnologia tem se aprimorado, com maior intensidade na atual Indústria 4.01 . Contudo, não se percebe a mesma rapidez da progressão do Direito e da legislação em acompanhar essas novas realidades.
São duas as formas de trabalho em plataforma. Ou se trabalha para a plataforma ou se trabalha na plataforma. Na primeira hipótese, será o algoritmo que irá governar e levar a demanda de trabalho até a oferta do trabalho. Como exemplo em que se trabalha para a plataforma, podemos citar os aplicativos de transporte de pessoas como a Uber. Na segunda hipótese, a despersonalização do trabalhador é total, eis que as microtarefas dos mais diversos setores são solicitadas nas plataformas e executadas pelos trabalhadores (crowdwork2). Como exemplo de trabalhadores que trabalham na plataforma, de forma praticamente invisível e desumana podemos citar a Amazon Mechanical Turk (Ribeiro, 2022).
Como dito, o capitalismo de plataforma proporcionou novas formas de obtenção de renda, viabilizando a prestação de serviços por meio de aplicativos. Ou seja, é possível trabalhar por meio de aplicativo. A partir dessa compreensão, que o serviço praticado na plataforma é executado por meio do trabalho do usuário prestador, e apesar da redação conferida pela Emenda Constitucional n. 45/2004 ao art. 114 da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), as discussões vão para além da existência ou não de uma relação de emprego, mas também sobre quem detém a competência para julgar.
Recentemente, nos autos da Reclamação 59.795, o Supremo Tribunal Federal (STF) cassou decisão do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 3a Região (Processo n. 0010140.79.2022.5.03.0110), que havia reconhecido o vínculo de emprego entre um motorista e a empresa Cabify, de transporte particular. Houve remessa para a Justiça Comum, sob o fundamento de que se trata de relação de natureza comercial, equiparada aos casos abrangidos pela Lei 11.442/2007, a qual versa sobre o transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros e mediante remuneração (STF […], 2023).
De outro lado, em sentença na ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (Processo n. 1001379- 33.2021.5.02.0004), publicada em 14/09/2023, o magistrado da 4a Vara do Trabalho de São Paulo condenou a Uber em obrigação de fazer, devendo proceder à contratação de todos os motoristas ativos na plataforma, bem como daqueles que vierem a ser contratados a partir da decisão, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 para cada motorista não registrado e, também, pagar R$ 1.000.000.000,00 (um bilhão de reais) a título de danos morais coletivos (Sentença […], 2023).
A desconformidade nos julgados reflete que a jurisprudência nacional ainda não se posicionou sobre a questão. A Suprema Corte Trabalhista também se mantém dividida. A Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1), responsável pela uniformização da jurisprudência das Turmas, está examinando as decisões divergentes nos autos (E-RR-1000123-89.2017.5.02.0038 e E-RR-100353- 02.2017.5.01.0066), ambos retirados de pauta (Uber, 2022).
Todavia, o descompasso do Poder Judiciário e Legislativo frente ao atual contexto de trabalho/relação comercial entre indivíduos e as plataformas digitais, já ultrapassou e muito a discussão de ser ou não relação empregatícia, com interpretações distintas sobre a existência dos requisitos: prestado por pessoa física, com pessoalidade, de forma não eventual, com onerosidade e subordinação (art. 3°, CLT).
Isto porque novos desdobramentos surgiram, alertas sobre a carga horária diária, ausências de intervalos durante o dia, ou mesmo entre um dia e outro, imprevisibilidade remuneratória mínima, as condições de saúde e segurança do trabalho desses prestadores de serviços em aplicativos, dentre outras problemáticas ao entorno. O que deve se passar na mente de alguém que sai diariamente de casa, incerto de seu retorno, ciente de que, na infelicidade de um acidente, não terá assistência da seguridade social durante a sua recuperação?
Sua remuneração está em cada passageiro transportado, encomenda entregue; a meta precisa ser atingida, caso contrário os algoritmos irão exibir menos o seu perfil, e tempos sem logar na plataforma levarão a uma provável exclusão definitiva. Talvez esse cidadão tenha a mente preenchida e sobrecarregada com essas tantas preocupações, ou esteja tão exausto que não consiga pensar em nada enquanto está sentado em algum meio fio fazendo sua refeição entre uma chamada e outra. Ou ainda, o que permeia os pensamentos de um indivíduo que esteja sendo contratado para efetuar microtarefas em plataformas de crowdwork, sentado por longas horas, tentando filtrar ofertas de serviços, efetuar a atividades em tempo hábil, às vezes incerto se será remunerado por ela mesmo após a sua entrega?
Ele sequer tem noção do todo que a sua tarefa está compondo, para que fim ela se destina, ou mesmo se condiz com seus valores pessoais. Diariamente está competindo com outras milhares de pessoas, no âmbito global, ciente de que seu tempo à disposição do aplicativo mantém sua reputação em alta. Ele permanece em um looping3 quase infinito, forçadamente interrompido por sua limitação física que exige descanso, para alcançar uma renda mínima de sobrevivência após várias microtarefas, por vezes de tipos diferentes e de distintas áreas de conhecimento. Talvez ele tenha sua mente inundada de pressões, desânimo, mas ele precisa trabalhar para sobreviver, então opta por enterrar seus pensamentos, cada vez mais fundo, se isolando do convívio social.
Há quem ainda se utilize do argumento de que chegar a essa situação de precarização do trabalho em plataformas é uma simples escolha, pois há a opção do mercado formal. Contudo, segundo pesquisa divulgada pela Agência de notícias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (Gomes, 2023), no primeiro trimestre de 2023 a taxa de desocupação fechou em 8,8%, 0,9 ponto percentual (p.p.) na comparação com o trimestre anterior. O número de desocupados chegou a 9,4 milhões; e a taxa de informalidade foi de 39,0% da população ocupada, somando 38,1 milhões de trabalhadores informais. Ou seja, existem inúmeras variáveis.
A ausência de legislação nacional sobre o direito à desconexão – direito fundamental
A partir da conjuntura fática apresentada, é possível compreender que desconectar-se da plataforma digital não é uma atitude simples de ser tomada. Isso porque, como dito, deslogar da plataforma tem implicações, desde não alcançar uma remuneração mínima adequada, até os reflexos na reputação do prestador, podendo chegar ao extremo de sua exclusão da plataforma, já referenciada como dispensa por algoritmos (Kalil, 2020).
A questão da desconexão já se revela um problema para os empregados formais, que têm amparo mais sólido da Justiça do Trabalho, tendo sua dimensão aumentada ao envolver trabalhadores autônomos em aplicativos, que trabalham sob demanda, rememorando à ideologia do just-in-time4 do Toyotismo5 .
Nesse contexto, será necessário um aprofundamento do tema, já que no Brasil, em pleno século XXI, apesar dos avanços da era da revolução tecnológica, não há legislação específica tratando o tema. Outrossim, vale citar Projeto de Lei n. 4.044/2020, ainda em tramitação, atualmente na Comissão de Comunicação e Direito Digital do Senado Federal, alterando o § 2° do art. 244, inserindo à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) novo parágrafo ao art. 59, artigos 65-A, 72-A e 133-A, versando sobre direito à desconexão e regras no teletrabalho, criando óbice ao contato do empregador fora do horário do expediente, com exceções sendo tratadas por negociação coletiva, além de conferir o direito ao recebimento de horas extras (Projeto […], 2020).
Examinando a Súmula 428 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Carlos H. B. Leite (2020), aponta para uma evolução na compreensão da referida súmula, interpretando a partir da eficácia horizontal e imediata dos direitos fundamentais. O autor reconhece, pela releitura, ofensa à desconexão do trabalho e ao direito fundamental ao lazer, passível de pagamento de sobreaviso quando o empregado, à distância, permanece no controle patronal por instrumentos telemáticos ou informatizados, em regime de plantão, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço.
Diferentemente, outros países já legislaram sobre a temática de forma direta, a iniciar pela França, em 2016, com a Lei El Khomri, prevendo que nas empresas com mais de 50 funcionários, o sindicato da categoria deve tratar o direito à desconexão como pauta obrigatória. Leis semelhantes foram promulgadas na Espanha, Lei orgânica n. 3/2018, e Itália, com a Lei n. 81/2017 (Ferreira, 2022).
Na América Latina, o Chile alterou pontos sobre o teletrabalho com a Lei n. 21.220 de 2020, com adequações ante a pandemia da covid-19, vedando ao empregador comunicar-se com seu empregado durante o intervalo de 12 horas contínuas. A Argentina também abordou a matéria através da Lei n. 27.555/2020, versando sobre teletrabalho e o direito à desconexão, com linguagem mais técnica, determinando que os softwares e plataformas devem ser programados para bloquear a conexão fora da jornada de trabalho (Ferreira, 2022).
A partir desse contexto, necessário se faz analisar os direitos sociais previstos na Constituição Federal, resguardado a todo indivíduo, inclusive trabalhadores. É a interpretação harmônica do Direito do Trabalho à luz da Lei Maior. Tais direitos traduzem a efetividade do princípio da dignidade humana, e a Constituição Federal de 1988, intentava a realização plena da cidadania. Segundo o Min. Luís Roberto Barroso, a atual Constituição é resultado de uma história de transição de um Estado autoritário para um Estado democrático de Direito, sendo dever do Estado atuar de maneira eficaz a fim de aliviar os problemas sociais, principalmente envolvendo indivíduos hipossuficientes, buscando minimizar as desigualdades sociais (Constituição […], 2018).
A atual redação do art. 6°, CF/1988 traz um rol de garantias que deveria ser o mínimo razoável para se viver de forma digna:
Art. 6° São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 90, de 2015)
O legislador consolidou em um único artigo as condições mínimas de dignidade necessárias para o cidadão, e a partir dela nasceram legislações infraconstitucionais objetivando a concretização dessas garantias (Constituição […], 2018). Segundo Walber Agra (2008), os direitos sociais são direitos fundamentais, normas de ordem pública indisponíveis e invioláveis. Devem ser consideradas no Estado Democrático de Direito, sendo sua principal finalidade a garantia de direitos mínimos.
Assim, o direito à desconexão está contemplado na Carta Magna, constituindo-se um direito social, intrinsecamente associado à saúde, trabalho e ao lazer. Isto porque o direito à desconexão gera saúde, proporciona lazer, dignifica e confere melhor produtividade ao trabalho.
O direito fundamental à saúde está vinculado ao direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana, atrelado à proteção e integridade física e psíquica. Verifica-se, em verdade, uma interdependência entre a saúde e outros direitos fundamentais, como a moradia, alimentação, trabalho, dentre outros. Sua concretização se dá de forma mais direta no art. 196, CF/1988, com o direito à saúde sendo um direito subjetivo de titularidade universal, bem como conferindo deveres ao Estado para promovê-la (Mitidiero, 2023).
No caso dos prestadores de serviços em plataformas digitais, os quais também não possuem normatização própria, esses se encontram duplamente desamparados. Primeiro porque as empresas de aplicativo se relacionam de forma comercial com esses trabalhadores, afastando qualquer responsabilidade de cunho empregatício, principalmente no que tange à saúde e segurança do trabalho, sem contribuição à seguridade social, tolhidos de receber benefícios previdenciários em situações de doenças comuns, acidentes do trabalho, demais licenças e garantias provisórias. Vale salientar que muitos trabalhadores não contribuem individualmente ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), dentre outros motivos, por falta de esclarecimento e pelo ônus financeiro no orçamento mensal familiar.
A doutrina tem apontado para uma nova classe, a dos trabalhadores parassubordinados. Conforme Amauri Mascaro Nascimento (2008), seria uma categoria intermediária entre um autônomo e um empregado, incorporando os trabalhos que de forma excludente não se enquadram exatamente nesses dois tradicionais conjuntos, como um trabalho autônomo assemelhado ao trabalho subordinado.
Já a segunda forma de desproteção reside justamente na falta de qualquer previsão legal, principalmente para esse grupo de trabalhadores, tratando especificamente sobre o direito à desconexão. Logo, na prática, vê-se excesso de conexão dos trabalhadores em plataformas digitais, dentre outros para assegurar renda mínima de sobrevivência, trazendo o atual conceito de escravidão digital, por Ricardo Antunes (2018).
No que tange ao direito fundamental ao trabalho, este também se encontra concatenado ao direito de se desconectar do trabalho, de acordo com o professor Jorge Luiz Souto Maior (2003), significaria o direito do homem de não trabalhar, de se desligar concretamente do trabalho. Esse não-trabalho significaria trabalhar menos, até o nível necessário à preservação da vida privada e da saúde. Então surge a questão: em horas, quanto seria o mínimo para um trabalhador em plataforma digital alcançar o suficiente para sobreviver?
A relativização do limite de jornada nas plataformas é notória. Em 2020, a Uber lançou uma ferramenta que desconecta o motorista automaticamente assim que atingido o limite de 12 horas online em um único dia, retomando o login após passadas 6 horas de intervalo. É intrigante que a medida foi compreendida pela empresa como uma ação para promover segurança viária (Uber […], 2020).
Interessante que a CLT, no art. 58, prevê que a duração normal do trabalho não excederá de 8 (oito) horas diárias. Em seguida, no art. 59, assevera que a duração diária do trabalho poderá ser acrescida de horas extras, não excedente de duas, sendo as horas extras remuneradas com adicional de pelo menos 50%. Ora, no exemplo anterior, o limite estabelecido para o bloqueio no recebimento de chamadas pelo aplicativo da Uber não é sequer a soma da jornada diária de 8 horas mais 2 horas extras, vai além, se atingindo 12 horas.
Na prática, é possível então um motorista trabalhar por 12 horas, comendo rapidamente em um intervalo rápido que não chega a 1 hora, descansando por 6 horas devido ao bloqueio de chamadas, equiparando-se a um intervalo interjornada, e em seguida voltando a logar por mais 12 horas. O resultado matemático é que dentro de 18 horas em um dia, o trabalhador já laborou por 12 horas, descansou 6 horas, e já retomou suas atividades para mais 12 horas de trabalho, por vezes sem respeitar um dia de descanso, já que não seria remunerado. Não existe a flexibilidade temporal que eles venderam.
Ora, a importância da desconexão não só se relaciona à preservação da higidez da saúde física e mental, mas está intimamente relacionada ao direito ao lazer, visto que este dialoga com a concepção de saúde, na compreensão de um estado de completo bem-estar físico, mental e social. Interessante que o conteúdo do direito ao lazer não foi definido na Constituição, mas se articula com outros princípios abordados na Carta Magna, como a previsão do salário mínimo, férias anuais remuneradas, descanso semanal remunerado, a fim de proporcionar tempos de lazer ao indivíduo. O lazer, portanto, é um direito fundamental, se traduzindo em um aspecto essencial para a construção da personalidade humana, compondo a concepção do mínimo existencial sociocultural (Mitidiero, 2023).
Nesse diapasão, o não desfrute dos direitos básicos ao lazer e descanso causam dano existencial, se revelando como ações da empresa que impedem o trabalhador de conviver e se relacionar com a sociedade. Isto porque o trabalho não deveria degradar o reconhecimento e identidade social do indivíduo. Aliás, o dano existencial se diferencia do dano moral, sendo este vinculado ao sentir e aquele a um não mais poder fazer, se manifestando ao lesado posteriormente, pois resulta de uma série de modificações prejudiciais no cotidiano (Ferreira, 2020).
Assim, a legislação brasileira está dessincronizada com o atual contexto fático, com as novas realidades de trabalho em plataformas digitais, que sequer podem ser enquadradas com perfeição nas atuais categorias de autônomos ou empregados, e mais distante ainda em assegurar o direito fundamental à desconexão. Como já esclarecido por Jorge Luiz Souto Maior (2003), o direito à desconexão não é tema meramente filosófico, nem se fala em direito em seu sentido leigo, mas deve ser abordado em um viés técnico-jurídico, para identificar o tempo de desconexão como um bem da vida passível de ser pretensão deduzida em juízo, tornando-o concreto e defensível judicialmente.
A hiperconexão e seus reflexos na saúde mental dos trabalhadores em plataformas digitais – Síndrome de Burnout
Observou-se a partir da análise do art. 6°, CF/1988, que o constituinte reuniu nesse artigo direitos sociais, fundamentais, a fim de proporcionar garantias mínimas de uma vida digna. Pois bem, ainda que não taxativamente descrito, o direito à desconexão encontra respaldo na Carta Política, ressaltando a interdependência com o direito à saúde, trabalho e ao lazer.
A partir disso, interessante como a falta de desconexão indica uma distorção sobre o direito ao trabalho, com o surgimento de uma cultura do esforço (Hustle Culture), difundindo a ideia de que o trabalhador só alcançará alta performance através de uma dedicação absoluta ao labor, sem momentos de descanso ou lazer, sinônimos de fraqueza e perda de tempo (Potiguara Filho; Silva; Pereira, 2023).
Porém, além do fomento dessa cultura, nota-se que no caso dos trabalhadores em plataformas digitais o excesso de trabalho estaria principalmente associado à necessidade de hiperconexão para atingir remuneração mínima e boa reputação. Ainda nessa linha, como visto anteriormente, o excesso de trabalho e a negligência aos tempos de não-trabalho, afetam o direito ao lazer, gerando isolamento social capaz de causar dano existencial, tocando à identidade social do indivíduo.
Percebe-se, pois, que a somatória dessas condições, hiperconexão de trabalho, não observância aos intervalos de descanso e tempos de lazer têm gerado significativamente casos de Síndrome de Burnout. Demonstra-se, pois, afronta direta ao direito fundamental à saúde, de forma integral, englobando o aspecto físico e, principalmente, o psíquico.
Na era digital, os transtornos mentais estão para o tempo presente como os acidentes de natureza física para o século XIX, no início da industrialização. No trabalho em plataformas, as exigências atuais de manter-se constantemente online, a informalidade, precariedade, baixa remuneração, o crescente controle por meio de algoritmos, as frequentes alterações do tipo de atividades e microtarefas, além da incerteza no pagamento, no caso do crowdwork, e a contínua busca por novas atividades, aumentam os níveis de estresse, sensação de insegurança e ansiedade (Moreira, 2020).
Uma das principais doenças ocupacionais psicológicas do atual século é a Síndrome de Burnout. Ela foi descoberta por Herbert Freudenberger, psicólogo alemão, que entendeu o surgimento da enfermidade como causa do local de trabalho, em meio a circunstâncias de insegurança laboral, jornadas extensas sem intervalos suficientes, além da ausência de higiene física e mental. Dentre as consequências da síndrome, destaca-se as emocionais: sentimento de derrota, sensação de incapacidade, cansaço mental; há também impactos físicos, como: pressão alta, dores musculares e de cabeça (Potiguara Filho; Silva; Pereira, 2023).
A Organização Mundial de Saúde (OMS) incluiu a Síndrome de Burnout na 11a Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID11) como um fenômeno ocupacional. É resultante do estresse crônico no local de trabalho, relacionada especificamente a questões laborais, não se aplicando a experiências fora desse contexto. É caracterizada por: sentimentos de exaustão ou esgotamento de energia; aumento do distanciamento mental do próprio trabalho, negativismo; e redução da eficácia profissional (CID, 2019).
Desde janeiro de 2022, a Síndrome de Burnout foi considerada uma doença ocupacional, salientando o Ministério da Saúde que o principal causador é o excesso de trabalho (Fasanella, 2022). A síndrome desencadeia quadro depressivo, sentimentos negativos e disfunções psicofisiológicas. Contribui ainda no desenvolvimento de doenças somaticoviscerais, por meio da ativação do sistema visceral simpático (SVS), devido ao estresse, além de desequilíbrios neurofisiológicos, devido a descompensação do sistema límbico, responsável pelas inúmeras interações entre os sistemas nervoso, endócrino e imunológico (Carelli, 2020).
Durante a pandemia da covid-19, uma das recomendações de prevenção foi o isolamento social, o que elevou o número de pedidos em delivery. Em relatório divulgado pelo iFood, foi apontado que em junho de 2020 o número de pedidos chegou a 39 milhões. Pelo cenário crítico durante a pandemia, muitos trabalhadores perderam seus empregos formais, buscando, mesmo em meio a uma crise sanitária, alternativas de obtenção de renda através dos serviços em plataformas. Apesar da exposição ao vírus, com incertezas e medos, continuar trabalhando informalmente era questão de sobrevivência (Silva, 2021). Assim, se para pessoas que podiam se manter isoladas em casa, desenvolvendo seus trabalhos em home office, as doenças mentais cresceram assustadoramente, para os trabalhadores em plataformas de entrega não foi diferente, provavelmente em maior número e grau.
Portanto, é evidente a urgência em tratar sobre normatização acerca dos trabalhos em plataformas digitais, bem como o direito à desconexão especificamente, a fim de preservar a dignidade humana, a saúde, ressaltando a mental, dispondo sobre regras de proteção a esses indivíduos, como forma de prevenção, viabilizando a judicialização a partir da concretude desses direitos.
Considerações finais
A atual revolução tecnológica, marcada pela inteligência artificial, megadados, algoritmos, fomentou o surgimento da economia colaborativa, comercializando serviços através de plataformas digitais, por meio de usuários prestadores cadastrados. Sem legislação especial, as decisões dos Tribunais nacionais seguem divididas quanto ao entendimento de ser a relação do prestador de serviços com a plataforma comercial ou empregatícia.
Algumas preocupações erguem-se diante da ausência de previsão legal, como as questões prejudiciais à saúde e bem-estar do trabalhador, que se encontra desamparado, dentre outros, dos benefícios previdenciários da seguridade social, regras sobre direito a intervalos, salário-mínimo, repousos remunerados e limite de jornada. Analisando a prática que ocorre na maioria dos casos dos trabalhadores em plataformas, é fácil notar que a falta das garantias mínimas de um trabalho decente, levam a uma extenuante jornada de trabalho para alcançar uma renda sustentável, levando a hiperconexão.
A partir desse cenário, viu-se que o direito à desconexão encontra respaldo na interpretação dos outros direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, como o direito à saúde, trabalho e lazer. Contudo, outra implicação é a ausência também neste caso de legislação nacional específica, agravando ainda mais as condições de trabalho precárias desses prestadores de serviços.
Os reflexos são percebidos, entre outros, na saúde mental dos trabalhadores, destacando a Síndrome de Burnout pela sobrecarga de trabalho devido à hiperconexão. Atualmente é considerada pela OMS como uma doença ocupacional, diagnosticada apenas em casos envolvendo o ambiente laboral, com sintomas emocionais: negativismo, sensação de incapacidade, exaustão mental, estimulando quadro depressivo, disfunções psicofisiológicas; bem como físicos: aumento da pressão arterial, dores musculares, estímulo de doenças somaticoviscerais.
Os transtornos mentais, como a referida síndrome, foram intensificados durante a pandemia da covid-19, diante do isolamento social, incertezas sobre um tratamento adequado, hospitais abarrotados, o medo de ter a vida ceifada. O contexto atípico de isolamento social teve reflexos nos empregos e economia em geral, com demissões e reduções salariais aplicadas por medidas provisórias diante do alarmante quadro. A solução então para muitos cidadãos que se viram com sua renda diminuída ou completamente cortada, foi integrar à coletividade de trabalhadores que prestam serviços por meio de plataformas digitais.
Portanto, esse trabalho se dispõe a alertar sobre a urgente necessidade de legislação tanto para os trabalhadores em plataformas digitais, como para o direito à desconexão, temas que estão intrinsecamente vinculados à saúde desses trabalhadores, com ênfase na mental, que não estão exercendo plenamente seus direitos fundamentais constitucionalmente garantidos.
1 Termo surgido durante a feira de Hannover, em 2011, na Alemanha, na busca de retratar o desenvolvimento da presente era e os impactos nas cadeias de organizações em nível global. (Schwab, 2019, p. 21).
2 Plataformas digitais de crowdwork contratam pessoas para executarem tarefas para empresas ou pessoas físicas, semelhante a uma terceirização online.
3 Repetição infinita.
4 Por hora certa.
5 Modelo de produção industrial japonês, marcou o início da Terceira Revolução Industrial, pelos anos de 1960.
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